‘Se você pode trabalhar com o que gosta, é um vencedor’ diz Spike Lee durante palestra sobre criatividade, cinema e racismo
Spike Lee foi um dos convidados mais aguardados pelo público no Rio Innovation Week. O diretor norte-americano conversou com o público sobre seus filmes, cinema, sua história, fez homenagem à cantora Gal Costa e ainda falou sobre racismo e política.
“Pessoas, música, a cultura do Brasil me inspiram”, disse no RIW ao saudar a plateia, antes de pedir um minuto de silêncio pela morte de Gal Costa. De fato, o interesse pelo país está expresso em trabalhos comerciais como os que fez por aqui em 2014, um protagonizado por Seu Jorge, e outro para acompanhar a música “The game”, de Kelly Rowland, um curta sobre um garoto da favela do Vidigal que ganha uma bola e uma camisa da Seleção Brasileira e sonha em ser jogador.
Antes disso, em 2012, Spike Lee gravou entrevistas com políticos, artistas e astros do esporte brasileiro para o documentário “Go, Brazil, go”, sobre a ascensão do país na cena internacional. O filme, no entanto, nunca foi lançado. “Muita gente não queria ver esse filme” diz.
O cineasta fez questão de, antes mesmo de começar a falar sobre suas obras e feitos, fazer críticas aos governos estadunidense e brasileiro.
Lee que é professor titular de cinema e direção artística da Universidade de Nova York também ressaltou a importância da inspiração e o quanto isso pode impactar no trabalho. “Digo para meus alunos que é preciso inspiração, técnica e trabalho duro para chegar lá. A alma tem que estar aberta, é preciso estar antenado para que as coisas aconteçam”.
No palco do Rio Innovation Week, ele recebeu no palco alunos da instituição sociocultural Cinema Nosso, que forma jovens negros para o mercado do audiovisual e das novas tecnologias.
“A tecnologia é muito poderosa e pode espalhar falsidades com apenas um clique. Tivemos presidentes do Brasil e dos EUA dizendo que a Covid era uma mentira enquanto milhares de pessoas morriam” afirma Lee.
Sobre as inovações tecnológicas, Spike ressaltou a importância do seu avanço e projeto expectativas ainda mais positivas.
“A tecnologia me permitiu descobrir que meus ancestrais maternos são de Serra Leoa e os paternos da República dos Camarões. É a prova científica das minhas origens. Nossos ancestrais nos empoderam. Ainda vivemos o trauma da escravidão. Não sai da nossa alma, da nossa existência. E é a partir desse trauma que fazemos nossa arte. Isso explica por que os artistas negros são tão criativos: viemos do mesmo lugar, da África, o berço da civilização”. Contou.
No decorrer da conversa com o mediador, Lee foi perguntado sobre seus filmes. “Faça a Coisa Certa” foi um dos longas-metragens mais citados e o diretor contou mais sobre a produção da obra: “o que eu queria mostrar com esse filme é que foi todo filmado em apenas um quarteirão. Queria apresentar todas as pessoas do local e passar esse sentimento para o público”.
Durante o seu bate-papo muito proveitoso na Plenária do RIW, Lee também comentou sobre o combate ao racismo.
De alguns anos para cá avançamos no combate ao racismo. Nos Estados Unidos, um exemplo disso é o sucesso mundial de “Pantera Negra: Wakanda para sempre” (2022), super-herói da Marvel. Mas o fato é que pessoas pretas não são tratadas corretamente no mundo inteiro, seja no Rio de Janeiro, seja em Nova York. Vejo isso todos os dias e temos que mudar — afirmou o diretor americano.
Spike Lee ficou famoso nos quatro cantos do mundo pelos filmes que fez a partir do final da década de 1980, como “Faça a coisa certa” (1989), que lhe rendeu indicação ao Oscar de melhor roteiro original. “Não fazia a menor ideia de como seria o filme. Eu tinha o título e sabia que se passaria no dia mais escaldante da história do Brooklyn. Estudos mostram que, quando a temperatura aumenta muito, tudo acaba em confusão” contou o diretor.
O filme era o favorito à Palma de Ouro em Cannes naquele ano, mas acabou perdendo para “Sexo, mentiras e videotape” (1989), de Steven Soderbergh — Lee ficou furioso. Depois vieram “Mais e melhores blues” (1990), “Febre da selva” (1991), “Malcolm X” (1992), cujo aniversário de 30 anos será celebrado com uma exibição especial na Academia de Música do Brooklyn, no dia 22 de novembro, “Uma família de pernas pro ar” (1994) e “Irmãos de sangue” (1995).
O que chama atenção nesse conjunto de seis filmes produzidos há mais ou menos três décadas, além dos prêmios e da aclamação internacional que angariou, é que tantos os temas quanto a cinematografia permanecem frescos e continuam sendo um perfeito retrato das tensões raciais nos Estados Unidos.
‘Se você pode trabalhar com o que gosta, é um vencedor’ foi o conselho que Lee deu às mais de mil pessoas que acompanhavam a palestra.
Spike Lee, que também é destaque por ser escritor (coautor, junto com o designer Aaron Perry-Zucker, do livro “Design for Obama”, publicado pela Taschen em 2009) e dono da produtora 40 Acres and a Mule Filmworks, continua a produzir freneticamente para cinema, publicidade e plataformas de streaming.
— Agradeço todos os dias por poder trabalhar com aquilo que mais gosto de fazer: filmes. A imensa maioria das pessoas não tem esse privilégio. Portanto, se você pode trabalhar com aquilo que gosta, pode se considerar um vencedor — afirma.
Sua safra recente inclui “Destacamento Blood” (2020), para a Netflix, e o documentário “NYC Epicenters 9/11 — 2021 ½” (2021), para a HBO. Dirigiu uma versão em vídeo do espetáculo “American utopia” (2020), de David Byrne, também para a HBO. Com “Inflitrado na Klan” (2018), faturou o Oscar de melhor roteiro adaptado, prêmio que se soma a uma longa lista que inclui Bafta, Emmy e o Grande Prêmio do Festival de Cinema de Cannes.
Atualmente, Lee trabalha com a ESPN em um documentário que conta a história do jogador de futebol americano Colin Kaepernick, que ganhou repercussão internacional após protestar contra o racismo, ajoelhando-se durante a execução do hino nacional nos jogos da National Football League (NFL), em 2016. O quarterback foi banido pela liga e até hoje treina com a esperança de voltar a jogar. Em 2018, o atleta foi escolhido pela Nike como um dos rostos que estampam a campanha especial da marca em comemoração aos 30 anos do slogan “Just do it”.